quarta-feira, 8 de abril de 2009

Cinza - Nem preto nem branco

Um novo caderno, um novo cheiro. Descobrimos agora a poesia contida no tom menos definido da paleta de cores... Marcadamente cinza.

Western

A serpente a rastejar
Prende e leva o teu olhar
Num impulso no seu dorso
Vês o mapa escuridão e cal

O duelo pressentiu
O chegar da pele estriada
Mão no coldre e mente aberta
Fogo negro, vôo e espada.

O primeiro a disparar
Sente o coice e vê o mar
O gatilho é o teu Graal

Ar aberto, um vencedor
Mão crispada, olhar curvado
A derrota a ti saiu
Quero a minha a furar-me o peito

Busco o certo e busco o mau
Quero ser um peito aberto
Ir ao chão, o sangue férreo
Sela a minha maldição.

V.E.P. (Vai em Paz)

De gestos trocados tu ligas o carro
A mala vazia e na boca um cigarro

Os vidros são como portas escancaradas
Segues e bebes bem mais desta estrada
Desta estrada

Vai em paz

Para trás deixaste uma morte mais dura
Um olhar mais certo e nos braços ternura

Deixaste uma sina, um passado, uma vida
Abriste a parede a um beco sem saída
Sem saída

Vai em paz
Não olhes nunca para trás
Seguindo em frente
Terás outras dores, outra gente

De gestos trocados tu ligas o carro
A mala vazia e na boca um cigarro

Os vidros são quatro portas escancaradas
Segues e bebes bem mais desta estrada
Qual estrada
Esta escada

Vai em paz
Não olhes nunca para trás
Seguindo em frente
Terás outras dores, outra gente
Gente de corpo dormente
De corpo e paixão mais quentes

Vai em paz
Não olhes para trás
Descansa em paz

Eloquente

Leva-me
Nesses cantos de agitar
Prende-me
Ao torpor de um chão repetido

Dizes-me até amanhã, mas é sempre longe de mais
Porque amanhã, sabes bem...

Falham-me
As promessas que me fiz e as
Sombras de um novelo perdido
Salvam-me

És tão eloquente
Larga-me entredentes
Sai da minha frente

Já que os olhos não desturvam
Sinto os cheiros que perturbam
Cala-me
Mata-me

És tão eloquente
Também sei de imensa gente
Perdida a vida inteira
Segue de coleira

És tão eloquente
Ego efervescente
Eco efervescente

Um Desejo a Rebentar

A flor aberta clama aos céus
Um vôo raso, fértil dor
E larga ao ar o pólen
Larga ao ar a sua flor

E há uma música a voar
Há um desejo a rebentar
Há um sonho imenso e chá
A Primavera a chegar

Vôo consumado, espera a fértil terra
Sol e cor, o cheiro é etéreo
Molhas os dedos nesse lodo sério
Sentes a seiva a entrar

E tu mergulhas no ar
O teu desejo, o teu luar
Dás gritos plenos de luz madura
Quente e suja

Alma máter, sérvia pura, esconso canto, livro santo
Pólen, quantum, rasgo, Rá.

Letras: Gonçalo Miragaia para Nem Preto nem Branco

A Estranha - A Estranha

O primeiro caderno deste espaço, palavras ao MAR, está cheio de certezas furiosas e deslumbres da semântica. É o caderno d'A Estranha, rebentando de quatro poemas:

Misericórdia

Não se engana nunca o sangue
nem mesmo quando escorre pela rua

e se as mãos explodem de raiva pura
melhor pescoço não há do que o teu

poupa-me a estrada
tirem-me o sono
acordem-me de novo
para um sério

pede-me de volta esse teu... nojo
que parece perguntar:
-"porquê eu?"

serei eu só quem tem pena de si?
pois então não quero
que tenham pena de mim!

numa modesta ocasião
testei o teu limite
sei agora que não tenho voz
por mais que eu grite

e se com o dedo pressionado
numa ferida eventual
sei que existem histórias
que acabam sempre mal.

Rodada Saia Cega

Calculado sentimento de recusa
inebriado só pela repulsa
dos batimentos descompassados
da própria cidade

um homem sério que seriamente nela habita
vagueia pelas correntes que ele próprio debita
forjando laços de enrodilhados
de falsa humanidade

por isso é
com certo receio que eu
recebo de braços abertos quem
é de corpo e alma prisioneiro

e quem tem dúvidas sobre isto é
vítima da própria cidade.

A Espia, a Outra e a Estranha

Todo eu
trigo
todo eu
sentido

mesmo de chuva
mesmo de chuva assim

sem pé

e é toda uma manhã
é só uma manhã
que se vai
que se esvai
que me trai.

Inversa Direcção

Põe a ferida no sal
que eles não sabem
que é tão bom cair no mal

e quem vem
na minha direcção
quem traz essa informação.

Letras: Bruno Broa e Miguel Pires para A Estranha